quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Governador de Alagoas, Teotônio Vilela Filho, oficialmente, pede perdão pelas atrocidades do "Quebra de 1912"


Governador Téo Vilela, ao lado do Reitor da UNEAL,
Jairo Campos,
 no ato de assinatura do pedido de perdão, em 01 de fevereiro de 2012

O discurso:

Minhas saudações aos alagoanos e alagoanas de todas as matrizes culturais e todos os matizes religiosos.

Não existe nação que se pretenda grande, sem um povo forte. Da mesma forma, não existe povo que seja grande, sem uma forte memória coletiva. A memória é a alma do povo e o povo é a alma da nação.

E nossa memória alagoana precisa ser revigorada com o resgate de lembranças escondidas, erroneamente varridas para baixo do tapete de penumbra do silêncio. Não podemos esquecer que 2012 marca o centenário do auge do período de perseguição aos praticantes dos cultos afro-brasileiros em Alagoas. Época de terror especialmente forte em Maceió, no episódio mais conhecido como a “Quebra dos Xangôs”, ou simplesmente, “Quebra”.

Pegando pela palavra, estamos aqui reunidos para quebrar o silêncio oficial que reinou durante décadas sobre os horrores daqueles acontecimentos que marcaram o ano de 1912. Naquele tempo, uma onda de violência sem precedentes se abateu sobre os terreiros em Maceió e sobre as pessoas que então praticavam os ritos de origem africana – o Estado não cumpriu, naquele momento, seu papel de assegurador dos direitos elementares do cidadão, nem na garantia do direito à liberdade religiosa.

Como referência, escolhemos o dia primeiro de fevereiro, quando uma entidade civil denominada Liga Republicana Combatente, comandou uma violenta invasão a centros de cultos e de cultura de matriz africana em Maceió. A primeira vítima nesta noite terrível foi Tia Marcelina, reverenciada como a principal Mãe de Santo de Alagoas daquela época.

Tia Marcelina, idosa com mais de oitenta anos, morreu vítima de um golpe de sabre em sua cabeça e chutes desferidos por um ex-soldado, desertor da força pública. Conta-se que no dia seguinte a perna do referido soldado secara e, depois, todo o corpo.

Em verdade, frente a esses episódios horrorosos, o que secou mesmo foi nossa memória e, junto com ela, nossa própria identidade perdeu parte de seu brilho. Secou parte de nossas culturas populares, com a perda de importantes lideranças e artistas do povo, detentores de práticas e saberes ancestrais impregnados ao nosso imaginário e nas coisas do cotidiano.

Segundo a opinião de estudiosos de todo o Brasil, as casas de cultos afro-brasileiros, além da importância dada pela sua prática específica - a do culto religioso -, funcionam também como verdadeiros celeiros de criatividade e cidadania, a exemplo de tantos outros cultos de matizes religiosos distintos. Os territórios das crenças são espaços de vida comunitária abertos às diferenças de toda ordem. Nesses perímetros, no caso dos cultos afro-brasileiros, aprende-se desde cedo o respeito aos idosos, portadores de saberes herdados de seus ancestrais. Também se aprende o respeito às crianças, patrimônio de toda a comunidade e, por isso, responsabilidade de todos. E o mais importante, aprende-se a ter orgulho de si mesmo, pelo desenvolvimento de um forte sentido de integrar um grupo cultural maior, seja Nagô, Angola, Gêge e as muitas outras nações que formam a riqueza das religiões africanas.

Muito me orgulha, na condição de governador deste Estado, saber-me protagonista deste ato da maior importância. Hoje, capitaneados pela Universidade Estadual de Alagoas e seus parceiros, nos reunimos para um passar a limpo da história, promovendo a justa compreensão da violência e dos prejuízos causados não só aos religiosos de matriz africana, mas a todo o povo alagoano.

A conquista de um futuro digno para Alagoas exige o revisitar do seu passado, na busca de corrigirmos os erros historicamente cometidos e ajustarmos o leme em direção a dias melhores.

O “Quebra”, mais do que um evento restrito ao aspecto religioso, apresenta-se como um momento de prevalência dos sentimentos de violência e intolerância, expressões retrógradas que precisam ser definitivamente superadas, em nome de uma sociedade verdadeiramente democrática e inclusiva.

Assim, o ciclo de atentados perpetrados em 1912 contra as casas de cultos afro-brasileiros pode ser visto como um atentado contra a autonomia do povo alagoano para construir uma identidade afirmativa de seu protagonismo, de sua efetiva presença na construção de uma Alagoas democrática. Se considerarmos que a maior potencialidade de qualquer sociedade se encontra justamente na força e criatividade de seu povo, podemos afirmar, sem qualquer dúvida, que o evento do “Quebra” resultou em inquestionável prejuízo ao nosso progresso enquanto sociedade como um todo.

Dizendo isto, penso emocionado naquela Maceió de um século atrás onde, segundo as palavras do saudoso historiador Felix Lima Júnior, nas noites de festa podia-se ouvir o som dos tambores da Ponta Grossa à Pajuçara e de Bebedouro ao Centro da Cidade. Penso nos belíssimos maracatus que desfilavam por estas ruas e que desapareceram após o “Quebra”.

Atento para as teses que apontam para a força social do Candomblé do tipo Xambá, reconhecido atualmente como patrimônio histórico nacional e que igualmente, segundo estudiosos, teria migrado para Pernambuco, privando-nos da sua riqueza cultural. Penso em uma cidade viva, colorida, embalada pelo canto carinhoso das inúmeras baianas e vendedores negros ambulantes que ganhavam o pão de cada dia por essas ruas.

De fato o “Quebra” nos empobreceu culturalmente, mas sobretudo nos impediu de crescermos através do convívio com as diferenças e, compartilhando saberes, construirmos um desenvolvimento social baseado em nossa diversidade e, portanto, comprometido com a inclusão cidadã de todas as parcelas da sociedade.

Assim, observando atentamente o ocorrido há um século, o Estado de Alagoas pede perdão pelo que seus Poderes Constituídos possam ter contribuído, por ações e/ou omissões, para com a violência desencadeada pelos obscurantistas da entidade civil conhecida como Liga dos Combatentes Republicanos e quem quer que lhe tenha sido cúmplice na vergonhosa onda de crimes cometidos contra os praticantes dos cultos afro-brasileiros.

Os atos verdadeiramente terroristas perpetrados pelos membros sectários dessa entidade, como indicam as fontes históricas ainda muito pouco divulgadas, tiveram o beneplácito de lideranças destacadas da sociedade alagoana e teriam sido incentivados pela disputa do poder político estadual.

Assim, no dia de hoje, ao realizar o pedido público de perdão aos religiosos de matriz africana, o faço principalmente como alagoano e em nome de toda essa sociedade. O faço com o objetivo de, ao olharmos para trás despojados de quaisquer preconceitos, reconheçamos as responsabilidades, enquanto poder público, frente ao terrível período do “Quebra”.

Ao pedir perdão não pedimos o esquecimento. Muito pelo contrário. Exibimos nossa dor e queremos expurgar nossa vergonha por aquele período tenebroso, convocando os alagoanos a se aprofundarem no estudo de nossa história. Estamos nos convidando a conhecermos a nós mesmos, entendermos nossas feridas, reconhecer nossos erros; compreender o passado, enfim. Não para carpirmos pecados, como se lágrimas e lamentos expiação fossem. Mas para que, conhecendo e reconhecendo ocorrências vergonhosas e terríveis como essa, possamos combater, com firmeza, toda e qualquer possibilidade de tragédias semelhantes.

Queremos virar essa página da história nos comprometendo com uma nova etapa, com o projeto de uma nova Alagoas, onde todos e todas possam exercer livremente suas diferenças e, a partir delas, garantir um futuro digno para seus filhos.

Para tanto, as religiões de matriz africana têm uma contribuição inestimável a dar nessa construção, pelo relevante papel educativo que desenvolvem junto a todas as camadas da sociedade alagoana, ensinando valores positivos, baseados no respeito ao próximo. Além disso, podemos dizer que cada Terreiro de Xangô de Alagoas tem enorme potencial no campo da formação profissional envolvendo jovens, podendo se transformar em importante espaço de capacitação de músicos, artesãos, educadores e outros profissionais, gerando renda e combatendo a pobreza em nosso Estado.

Mas, fundamentalmente, independente desses conceitos de participação e formação cidadã, ao nunca esquecermos as dores e crimes do “Quebra”, o Estado de Alagoas reafirma seu compromisso básico, elementar, de respeitar, integralmente, e de garantir através da força de seus poderes constituídos o direito irrestrito à liberdade de culto religioso. Este é um pilar básico, indispensável, ao exercício do Estado Democrático de Direito.

Mais uma vez expresso meus parabéns a Universidade Estadual de Alagoas e seus parceiros pela iniciativa e quero colocar-me à disposição para, sempre que for preciso, estarmos juntos nessa construção. A todos e todas deixo meus votos de melhor proveito desse evento que já entrou para a história dessa nova Alagoas.

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