ARTIGOS

PARA ENTENDER O ‘QUEBRA DE 1912’

RACHEL ROCHA *

O Quebra de 1912, ou “quebra quebra”, é um evento de suma importância para se compreender aspectos racistas da cultura alagoana, ou, ao menos, para indicar pistas na compreensão do que resultou, como comportamento contemporâneo, das práticas de exclusão e intolerância para com o universo da cultura africana, sobretudo a religiosa, em Alagoas.

O episódio aconteceu em 1º de fevereiro de 1912, em Maceió, e consistiu na destruição de todas as casas de culto afro-brasileiro existentes na capital. Não se sabe, ao certo, o número de templos destruídos, nem tampouco quantas pessoas estiveram envolvidas no ato criminoso.

As referências historiográficas sobre o fato são esparsas e todas bebem da mesma fonte, que é a sucessão de artigos publicados na sessão “Bruxaria”, de Oséas Rosas, no já extinto Jornal de Alagoas, dias antes (e depois) do episódio. Historiadores como Sávio de Almeida (no artigo “Por amor à tia Marcelina”), Douglas Apratto (no livro A Metamorfose das Oligarquias) ou cronistas da lavra de Félix Lima Jr. (no livro Maceió de Outrora. Vol.2) relatam aspectos desse evento que teve força suficiente para aniquilar ou ao menos intimidar as práticas religiosas então efervescentes na capital provinciana do início do século XX, e que talvez explique muito da nossa situação atual.

Maceió era então uma cidade pequena, e considerando o papel preponderante da Igreja católica na formação do território alagoano, não é difícil imaginar a existência de uma mentalidade grandemente avessa a práticas religiosas outras que não a católica.

Sabe-se, através da literatura especializada, que o movimento que culminou com a destruição das casas de culto afro em Maceió foi insuflado pela Liga dos Republicanos Combatentes – uma entidade civil com força suficiente para instigar e mesmo levar a cabo atos ilegais como invasão a casas oficiais, tiroteios, intimidações. O contexto político da época precisa ser levado em conta.

Trata-se de um momento em que a oposição, liderada por Fernandes Lima, tenta derrubar do poder a bem estabelecida e consolidada Oligarquia Malta. Euclides Malta, representante máximo da situação, era abertamente associado, pelos oposicionistas, aos cultos africanos e a seus representantes. É um fato que Euclides Malta mantinha boa convivência com os pais e mães de santo, como, aliás, é prática dos políticos em todo o País.

A crônica de Félix Lima Jr. afirma que os terreiros se distribuíam por toda a cidade: de Bebedouro ao Farol, da Ponta Grossa à Pajuçara; de modo que se podia ouvir os tambores tocando em dias de festa em praticamente toda a cidade.

Foi o próprio povo, insuflado pela Liga, que destruiu as casas religiosas. Os terreiros foram invadidos, os objetos sagrados foram retirados dos pejis e queimados em praça pública; pais e mães de santo foram espancados e detratados publicamente.

O que restou desse ato de vandalismo foi reunido e entregue, em tom de deboche, à instituição Perseverança e Auxílio dos Empregados do Comércio, e lá ficou durante anos, numa espécie de depósito.

Anos depois, Abelardo Duarte e Théo Brandão recolheram as peças, catalogaram o material e o organizaram, transformando o que escapou do fogo na Coleção Perseverança, de propriedade do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL). A coleção encontra-se em exibição no referido Instituto e é constituída por representações antropomórficas dos orixás, assentamentos, instrumentos musicais, jóias, paramentos rituais etc.

É muito importante dar visibilidade a esta coleção, até porque ela é um dos documentos mais importante do Brasil, quiçá da América Latina, sobre a presença negra religiosa no Brasil.

O antropólogo Ulisses Neves Rafael, da Universidade Federal de Sergipe, prepara tese de doutorado sobre o Quebra de 1912.


(*) É JORNALISTA E ANTROPÓLOGA ( e atualmente {2012} é Vice-Reitora da UFAL)



Publicado originalmente no Jornal Gazeta de Alagoas em Edição do dia 01 de fevereiro de 2004

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